domingo, 3 de fevereiro de 2013

A Benzedeira e o Saci


Atual fachada da casa onde viveram 'Seu' Albino e Dona Hilda. Antes, sem muro e sem cerca. Apenas um barranco onde uma escada foi moldada e que levava a casa abaixo do nível da rua. Seus filhos e netos ainda vivem ali.


Na Rua Dois rondavam muitas histórias de fantasmas, espíritos e entidades pertencentes ao folclore brasileiro. Não era apenas superstição  Os moradores ali na grande maioria viveram na roça, bem no interiorzão mesmo, com luz de lampião, carroça como meio de transporte, longas caminhadas  e muitas delas atravessavam os imensos campos das lavouras. Ali, a devoção e a fé era parte da cultura e rotina das pessoas. Casas há quilômetros de distância uma das outras. A escuridão da noite só era dissipada com noite de Lua cheia e céu estrelado. E os sons da noite mantinham os sentidos alertas.

A superstição e a fé fazem as pessoas enxergarem aquilo que elas acreditam existir, mesmo que não exista... Mesmo que exista uma explicação racional. Ignorância? Creio que não! As pessoas daquela época e dessas localidades rurais eram ingênuas, quase que inocentes  Tinham malícia pra viver, pra negociar, pra criar os filhos, para viver em comunidade, mas não para agir com segundas intenções maldosas.

Até mesmo algumas superstições conhecidas tinham uma boa intenção: não deixar o chinelo virado ou a mãe morria. Colocar uma vassoura atrás da porta quando a visita fosse desagradável e desejava-se que ela fosse logo embora. Não comer manga e tomar leite. Não comer ovos e carne de porco em período menstrual. Ter um vaso de Arruda na porta ou usar um galho preso na orelha. Não sentar na cama onde um casal dormia. Não levantar um bebê numa altura acima da cabeça. Eram muitas... Todas com a intenção de manter os filhos 'na linha'. Também pudera: a maioria das famílias tinham de 4 à 10 filhos! Era preciso uma boa tática para mantê-los disciplinados.

Eu adorava ouvir estas histórias de assombrações e aparições. Na verdade, não sentia medo e nem me espantava. No fundo, nem acreditava nelas. Mas o modo como contavam me encantava. Gostava de observar as expressões das pessoas quando contavam histórias. Todo o rosto e corpo agiam em conjunto, e no olhar eu quase podia ver o narrador se transportando para aquela história. Eu pegava carona.

Meu pai vivia nas feiras do 'Rolo'. Nessas feiras as pessoas trocavam coisas que não queriam mais por coisas que queriam. Cada vez que meu pai ia ele conseguia algo de maior valor que da última aquisição. Foi assim até que conseguiu uma TV usada que mesmo naquela época já era ultrapassada. A TV era chamada de televisor. Muito diferente das TVs de tela plana que vemos hoje... Os aparelhos televisores tinham pernas iguais as mesas e cadeiras tem. O botão para mudar de canal era enorme e cada vez que se mudava o canal ouvia-se um estalo. Hoje, minha transmissão HD por assinatura de 120 canais me faz pensar do que reclamamos: aquela TV só tinha quatro canais! O que mais marcou na lembrança foi o som do chiado e as imagens em preto e branco. Só pessoas de alto poder aquisitivo tinham TV. Boa parte dos moradores da Rua Dois não tinham. Novela, só no rádio. Por isso, meu pai não pensava só em sua família ao desejar adquirir o aparelho. Pensava também nos vizinhos. Ele sempre teve a mania de dividir tudo. Tanto é que na Copa de 1986 foi na Casas Bahia - que anos antes vendia seus produtos em peruas Combi - fez uma prestação de várias parcelas, montou uma barraca na calçada, pegou a mesa da cozinha onde colocou a TV á cores, e montou uma churrasqueira para que a rua inteira pudesse assistir aos jogos. Tudo isso depois de mobilizar a mulherada e as crianças para recortar várias bandeirinhas verdes e amarelas para decorar a rua inteira. 

Com o televisor ligado todas as noites no Jornal Nacional com Cid Moreira, íamos  para a casa dos vizinhos, na segunda casa depois da nossa. Atravessávamos quintal por quintal, pois não haviam muros ou cercas. Neste período, meus pais 'trocavam' de filhos. Nós íamos para o vizinho ouvir histórias do simpático casal que ali morava. E os filhos deles iam para nossa casa assistir novela. Eu e minha irmã éramos ainda muito crianças e eramos proibidas de assistir. O casal simpático não gostava de televisão. Então, antes de entrarmos pela cozinha, sentíamos o cheiro de café recém passado em filtro de pano. As canecas de Ágata sempre estavam posicionadas no lugar onde nos sentaríamos á mesa. Após nos sentar, Dona Hilda servia o café e 'Seu' Albino é quem começava a contar as histórias.

'Seu' Albino era um imigrante português. Achava ele bonito. Gordo e alto, tinha bochechas rosadas e olhos claros. Sempre com um suspensório segurando as calças, era pra mim a perfeita imagem de Papai Noel de férias, pois, ele era calvo e não tinha longas barbas brancas, apenas bigode. O que mais gostava quando ele falava era de seu sotaque. E toda vez que nos via dizia: "- Cadê a baiana de cacule?".

Dona Hilda era a benzedeira da Rua Dois e redondezas. Mesmo sem saber o que era uma benzedeira, eu via algo de misterioso nela. Acreditava que ela era uma bruxa boa. Tinha um nariz grande e meio que cumprido. Usava os cabelos presos e um coque. A ponta dos dedos afinalados e unhas grandes. Parecia ter o dobro de idade que possuía. Não era bonita, mas eu achava! Tinha uma pele queimada de sol, típica de índios. Enquanto ouvia as histórias, observava os tantos caldeirões de ferro pendurados na cozinha e aquela casa toda de tijolinhos a vista dando uma aparência de casa com três séculos de idade. Dona Hilda não ficava quieta, andava de um lado para o outro se ocupando com suas tarefas mesmo a noite. Balançava sua longa saia escura e a ideia de que ela era uma bruxa ficava mais forte. No dia que á vi com os longos cabelos negros soltos que quase chegavam á dobra das pernas eu tive certeza: é bruxa!

Havia uma crença entre os moradores de um tal de 'bucho virado'. Era algo que vez ou outra toda criança tinha. Penso que hoje o tal de 'bucho virado' seja a tal da virose que os médicos nunca explicam direito o que é. Parece que aquela história de erguer a criança na altura acima da cabeça fazia muito mal. E erguer a criança em movimentos muito bruscos fazia com que o aparelho digestivo das crianças 'saísse do lugar'. Causava diarreia e muita febre. As mães ao ver os sintomas já reconheciam e corriam para Dona Hilda. Minha mãe era uma. Era frequente minhas idas para ser benzida. Eu já era grandinha a última vez que vi a dificuldade da benzedeira de fazer seu ritual. Dona Hilda dizia que era 'cobreiro' e mau olhado.

O ritual parecia simples. Ela pegava uma vasilha com água e rezava nela. Pegava vários ramos de Arruda e mergulhava naquela água. Depois de nos deitar na cama diante dela, ela erguia o ramo de Arruda e espirrava aquela água sobre nós cantando uma musiquinha que só lembro o começo: "- Credo, em Cruz e Cobreiro...". Cantava, fazendo o sinal da cruz no ar e espirrando a água. Depois, segurava os tornozelos, colocando os calcanhares lado a lado. Feito isso, nos erguia até ficarmos de ponta cabeça e nos virava. No mesmo dia os sintomas desapareciam. Seria feitiço?

Anos depois, meu filho mais velho ainda bebê apresentou os mesmos sintomas várias vezes. Com febre tão alta que causava delírios, levava ao Pediatra que não descobria o que era então, só passava antitérmicos. Não havia ainda esse diagnóstico de 'virose'. Um dia, minha mãe lamentou que Dona Hilda não estivesse mais entre nós pois aquilo era mau olhado. Me lembrei do ritual. Não tinha Arruda e nem me lembrava mais da musiquinha ou que tipo de oração ela fazia. Mas, deitei meu filho diante de mim e juntei os calcanhares. Percebi que uma das pernas estava alguns centímetros mais longa. Mantendo os calcanhares juntos, ergui meu filho e o virei. Na noite daquele dia a febre e a diarreia passaram. Outras vezes depois, percebi que uma perna sempre estava mais longa que a outra e concluí que, de tanto erguer e brincar com meu filho suspenso no ar, de alguma forma o quadril saia do lugar causando os sintomas. Depois que passei a ter mais cuidado, nunca mais houve os sintomas.

Em uma das noites após um longo período de histórias - passou naquela noite algum programa especial depois da novela - eu e minha irmã nos despedimos do 'Seu' Albino e de Dona Hilda e saímos para ir pra casa quando minha irmã parou no meio do caminho, assustada com um dos vários cachorros da casa que latia olhando para o mato. No fundo do quintal havia muito mato ainda. Olhei curiosa para saber o que estava irritando o cachorro. Vi então aquele par de olhos vermelhos feito sangue que desapareciam toda vez que piscavam. Na minha mente infantil só havia alguém escondido ali. Não me questionei sobre os olhos vermelhos. Dona Hilda saiu e perguntou o que estava acontecendo. Mostrei a direção onde estavam os olhos vermelhos. Ela riu e disse: "É o Saci" Não precisa ter medo, ele só está curioso!". "- Como a senhora sabe? - indaguei ao que ela respondeu: "- Ás vezes, converso com ele! Podem ir, eu fico aqui olhando!"

Minha irmã se agarrou em mim e fomos caminhando de volta pra casa, quintal por quintal até encontrarmos os filhos do casal que retornavam de nossa casa. Não contamos o episódio a eles, mas contamos aos nossos país. Minha mãe duvidou. Meu pai riu e disse: "- É, ás vezes, ele passeia por aqui! Também já vi ele!"

Superstição ou não? Nós enxergamos as coisas em que acreditamos!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O Lobisomem da Rua 2


A casa - hoje com a fachada modificada - onde viveu o suposto Lobisomem.


Esta história é verídica! Pelo menos as pessoas que a contaram - e algumas delas como testemunhas - são pessoas de credibilidade. Eu mesma não vi nada e nem podia: era apenas uma criança. Mas ouvia os adultos comentando preocupados toda vez que o Lobisomem da Rua Dois aparecia.

Mas, se alguém ainda duvidar deste relato, pode procurar os moradores mais antigos da rua que ainda vivem lá.

Engana-se quem pensa que para a aparição do Lobisomem acontecer era preciso esperar as noites de Lua cheia ou se armar com revólveres de balas de prata. Bastava ser noite e ele surgia quando menos se esperava...

Haviam aqueles que apenas ouviam os sons na noite e concluíam que ele estava perambulando pela rua. Um uivo agudo misturava-se aos latidos dos cães agitados. Naquela época, todo mundo tinha ao menos um cão. As ruas de terra, pois o asfalto ainda não havia chegado ali. Muitos terrenos ainda sem proprietários onde o mato crescia livre. As casas com cercas eram poucas e apenas serviam de ornamento na frente das casas como um modo de delimitar até onde era o quintal e onde começava a rua... Os muros ainda não eram muito usados - apenas em casas de famílias com poder aquisitivo maior. Para ir na casa de um vizinho não era preciso chegar primeiramente à rua: cortava se caminho pelos quintais sem nenhum obstáculo entre eles. Por isso, todos os cães saiam de seus abrigos de encontro daquele ser. Aqueles que se atreviam - ou tinham um pouco mais de coragem - e olhavam pelas frestas das janelas, contavam que os cães agitavam-se e pulavam ao redor do ser que se comportava como se quisesse arrancar a própria pele... Ele se contorcia como se seu corpo estivesse ardendo em brasas! Arrancava toda a roupa, rasgando-a em retalhos e ficava nu. Depois saia correndo com os cães, como que em seu próprio bando, com a coluna brutalmente arqueada para frente e de quatro,  sem perder as características humanas. Em noites nubladas nada de certo podia ser dito. Nas noites de Lua cheia a luz da Lua era intensa e revelava detalhes surpreendentes!

Os boatos e desconfianças sobre o Lobisomem ganhavam mais forças com certos detalhes supersticiosos  a casa do homem que muitos afirmavam ser o Lobisomem ficava justamente em uma encruzilhada. A Rua Dois passava enfrente a casa do homem e uma terceira rua - travessa da Rua Dois - era uma subida bem diante da casa. O suposto morador era o primeiro proprietário do imóvel... Uma casa de aparência sinistra, bem abaixo do nível da rua, sem movimentação de seus habitantes, sem os sons de uma rotina familiar como toda casa costuma ter. O homem tinha feições grosseiras, era muito sério e não falava com ninguém. Passava como se não existisse mais ninguém no mundo além dele. Em um tempo onde todo mundo sabia quem era todo mundo, ninguém sabia nem o nome do homem.

Meu pai sempre repete a mesma história... Ele foi uma das testemunhas! Trabalhava em uma empresa como Torneiro Mecânico e seus serviços eram sempre requisitados. Metalúrgico, acontecia que ele não tinha data certa para folgas nem horário certo para sair do trabalho. Naquela noite o conserto de uma máquina levou muito mais tempo que o esperado e passou a noite consertando-a. Pensou em dormir ali mesmo no trabalho para estar no horário certo no outro dia, mas resolveu passar em casa para certificar-se que tudo estava bem. Era um fim de madrugada com muita névoa quando ele chegou na esquina da Rua Dois e de onde já podia avistar aquele bando de cães histéricos e o que ele achava ser um homem se contorcendo.

Preocupado acreditando que algum vizinho seguia para o trabalho e estava sendo atacado pelos cães, aproximou-se armado de um pedaço de pau que encontrou jogado. Alguns passos antes de se aproximar viu o rosto do homem se voltando em sua direção revelando um semblante distorcido e aterrorizante. O homem começou a uivar e ao se contorcer revelou estar nu. 

Meu pai assustado afastou-se - sem deixar de observar - e deu a volta  o máximo possível para poder seguir seu caminho. Entrou em casa assustado acordando a todos contando o ocorrido. 

Naquele mesmo mês, visitávamos uma amiga de minha mãe - Mira -  que morava na rua debaixo a Rua Dois. Ela se encontrava muito assustada, contando um episódio que acontecera na noite passada. 

Ela possuí até hoje nos fundos da casa um quintal lateral. Atrás deste quintal há um salão que sempre serviu para alugar para pequenos comerciantes. Ao lado, a janela da cozinha se destaca. Do lado oposto um muro alto. E de frente  um corredor - em parte coberto de telhas -  onde era uma varanda. Portanto, dificilmente alguém de fora tinha acesso a este espaço. Principalmente naquela época que o quintal foi cercado - como uma gaiola gigantesca - por alambrados espessos para que ali fossem criados gansos. O espaço foi coberto apenas por alambrados na parte superior, sem telhas. Os gansos possuíam um abrigo onde podiam se proteger da chuva, do sol ou dormir.

Naquela noite toda a casa acordou com o barulho ensurdecedor dos gansos. Eles davam aqueles gritos estridentes e estavam agitados. Mira levantou-se e se dirigiu a cozinha com a intenção de observar o que estava acontecendo pela janela com vista para o criadouro. Ao acender a luz e antes de alcançar a janela, ouviu batidas fortes na porta que levava ao corredor externo. Ouviu os gritos da vizinha de trás, pedindo para que ninguém saísse e avisando que os gansos estavam sendo atacados. O grito daquela mulher era carregado de pavor e todos temeram sair e até olhar pela janela.

Só quando o dia amanheceu e se certificaram que nenhum som mais se ouvia, saíram para o corredor para ver os gansos. Todos eles estavam mortos, alguns com mordidas no pescoço e sem nenhum vestígio de sangue! Outros sem a cabeça. Imaginaram que um bando de gatos ou algum outro animal tivesse encontrado um modo de passar pelo alambrado e atacar os gansos. Este pensamento de imediato parece ser o mais lógico e racional. Mas, ao procurar um lugar onde um animal pudesse passar nada encontraram. Não havia como os gansos saírem muito menos um animal entrar.Então, logo pensaram que por alguma razão a vizinha de trás matou as aves. Foram até ela interrogá-la e ela parecia em choque. 

Contava que ao ouvir o barulho dos gansos, correu para a janela para ver o que acontecia. Viu um homem segurando um ganso pelo pescoço e o chacoalhar suspenso no ar. Achou que estava muito sonolenta e escuro demais para crer que estava vendo um monstro matando os gansos. Pois a postura do homem era estranha, ele ás vezes virava seu rosto para o céu e uivava, grunhia feito um bicho. Ela se apavorou, não sabia mais o que estava vendo. Saiu correndo pelo quintal, pegou o bambu que servia para apoiar o varal de roupas e voltou para dentro da casa trancando-se e através da mesma janela,  usou o bambu para bater na porta e chamá-los mas, não sabia o que lhes dizer.

A polícia foi chamada. Desacreditaram da versão da vizinha mas ela não podia ter alcançado todos os gansos com um bambu que tinha comprimento suficiente para ser empunhado e alcançar a porta, não o quintal lateral. Observaram as marcas no pescoço das aves e procuraram por algum lugar onde um animal pudesse ter entrado. Concluíram ser cão pelo tipo de mordida. Estranharam porque um cão - diferente de gatos - não teria como escalar muros, telhados, muito menos um corpo maleável para passar por possíveis frestas dos alambrados. Foram embora dizendo apenas que foi um cão e nada podia ser feito a respeito. Naquele tempo a polícia era prática e inquestionável assim...

No fundo, todo mundo achava a mesma coisa mas ninguém tinha coragem de dizer... Coincidência ou não, ao lado da mulher que bateu na porta com o bambu morava o suposto Lobisomem... 

 Logo após o episódio, o homem carrancudo da encruzilhada-  apontado como o Lobisomem - mudou-se durante a noite quando todos dormiam, talvez para não ser visto ou questionado. Depois de um bom tempo, a casa foi comprada por um casal as vésperas do casamento. Uma atmosfera estranha e horripilante era sentida ali, mesmo com toda a decoração e capricho de recém casados. 

Até hoje não houve explicação para a morte dos gansos, nem tão pouco da visão do homem nu se contorcendo na rua.


A encruzilhada - hoje asfaltada - onde muitos presenciaram as transformações do 
Lobisomem rodeado de cães.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A Rua 2 entrando na nossa história!


"Fotos nos fazem relembrar tantas coisas! Quantas vezes arrastei a cadeira com sacrifício para tentar alcançar o calendário na parede. Calendários, imagens de santos, ferraduras e cabaças: refletiam superstições e a disciplinada contagem dos dias. Festa de criança tinha bebida alcoólica porque os homens aproveitavam sempre as festas pra 'encher a cara'. Um vaso de planta no armário... Uma Avenca que acredito que seja a mesma que ainda está lá na casa onde nasci. Essa Avenca tem história!"


Minha mãe morava com a família em um sobrado onde hoje está a distribuidora da Brahma, onde hoje se estende a avenida principal. Naquela época era a rua central, caminho que ligava um bairro ao outro e onde o comércio de instalava e se instala até hoje. Vieram do 'interiorzão' de Guararapes depois que parte da família de meu avô se instalou na Vila das Belezas. Em algum lugar por ali havia uma vizinha onde ela ia muito. Ao lado da casa desta vizinha, um quartinho era alugado para um rapaz solteiro que sempre notava minha mãe chegando, através do muro de tijolos vazados. O tal rapaz era meu pai.

Namoraram, de início escondido do meu avô, porque japoneses não aprovavam a mistura de raças. Para meu avô, seus filhos deveriam unir-se a pessoas com a mesma descendência. O excesso de disciplina não adiantou muito: seus seis filhos casaram-se com brasileiros.

Diz meu pai até hoje que quando olhou para minha mãe a primeira vez sentiu amor! Ficou encantando por ela ser tão linda! Enquanto estavam apenas de flerte, ele pensava que ela seria uma boa esposa por causa de sua descendência que cultiva valores muito nobres. Acreditou que ela deveria ser prendada, trabalhadora, esforçada, doce, delicada, seria uma boa mãe e boa esposa. E foi!

Namoraram enquanto esperavam meu avô enfim aprovar o relacionamento deles. Mas minha mãe acabou ficando grávida. De quem? Eu mesma que já queria aparecer na história! 

Quando meu avô soube, expulsou minha mãe de casa. Ela não teve direito nem de levar o enxoval que já fazia há um bom tempo. Um baú com tudo o que ela guardava para seu casamento com meu pai não pode ser levado consigo. A única coisa que conseguiu levar foi um endredon - ou como a família dela chava, futton - e que passou a ser usado por mim depois que nasci. Fui crescendo arrastando aquilo tudo de um lado para o outro. Só dormia enrolada nele.

Expulsa de casa não houve outra alternativa: meu pai levou minha mãe para o tal quartinho onde vivia. Era um quarto típico de rapaz solteiro: com posters de mulheres lindas na parede, Tv, rádio, roupa pra todo lado e a desordem reinando. A primeira coisa que passou pela cabeça de minha mãe ao morar ali foi fazer uma bela de uma limpeza e deixar tudo com cara de quarto de casal.

É ai que entra a Rua Dois na nossa vida! (é, porque eu já estava fazendo parte da Da casa onde minha morava via-se aquele morro alto - quase montanha - diante de si. Ali era área de uma fazenda foi loteada em grande lotes de chácara e logo depois, loteados novamente em metros quadrados para residências. O loteamento criou ruas paralelas: a Rua 1,ás margens do córrego; a nossa Rua 2 e a Rua 3 que é uma travessa quase no meio da Rua 2. A importância da Rua 2 pra mim é que ela estava entre as outras duas e seus moradores eram ligados entre si seja por parentesco ou por amizade.

Meus tios, uns casados e outros pra casar, resolveram comprar um lote ali e meu pai também. Tio Valdemar escolheu um lote na Rua 1, tio Mário escolheu um lote vizinho de direita e meu pai escolheu o lote vizinho dos fundos, na Rua 2. Ás vezes, penso que meu pai tinha cisma com córregos e rios. Viu na sua infância e adolescência muito rio 'na cheia'. É a impressão que passa quando conta suas histórias, ainda mais porque sabemos que ele tem certo trauma de chuva. Na Rua 2 ele ficaria em um nível bem mais alto que o córrego.

Ele mesmo desenhou a planta da casa e começaram então a construir a casa com cozinha, um quarto e um banheiro interno - naquele tempo muitas casas tinham o banheiro do lado de fora, costumem que traziam da roça. Do lugar onde muitos vieram, não havia esgoto como na cidade. Nem água da torneira: água só puxando do poço.

Três meses antes de eu nascer meus pais se casaram no único cartório da região. Só soube que eu estava presente no evento porque desde criança cismava com as fotos do casamento. Perguntava pra minha mãe porque a barriga dela estava grande, embora ela usasse naquele dia um casaco largo e fechado com botões enormes, moda daquele tempo. 

Ali na Rua dois o casal se instalou. Três meses depois eu nasci e meus pais deixaram de ser apenas um casal e passou a ser família. Dois anos depois minha irmã nascia!

Recomeçando...


"Olhando assim eu sempre penso: estas casas sempre estiveram aqui! As mesmas casas e as mesmas famílias."


Antigamente era Rua Dois... Hoje o nome é outro, o nome de alguém que ninguém nunca conheceu nem tão pouco ouviu falar. 

Na Rua Dois muita gente nasceu, cresceu, fez outra família, teve filhos que crescem ali e ali terão seus filhos também. Muitos já não moram mais lá porque foram viver em outro lugar no além: Dona Hilda, 'Seu' Albino, 'Seu' Irineu e sua esposa, Dona Alice, 'Seu' Joaquim...  Mas seus filhos, netos ainda moram na mesma casa. Pessoas que escolheram aquele lugar pra viver e formar família e fincar raízes, diferente do que vemos hoje: as pessoas vivem mudando. Testemunhas e contadores de histórias ricas. 

Na época que contavam histórias eu era apenas uma criança em meio a roda de conversa dos adultos. 
Ouvia tudo fascinada, sem questionar se era verdade ou não. O que sabia é que era bom poder ouvir tudo aquilo e o modo com que contavam - tão cheios de entusiasmo e energia - deixava as histórias muito mais interessantes.

Histórias que - assim como os moradores da Rua Dois - fincaram raízes na minha memória. Histórias de espíritos, assombrações de vida e de morte.

Hoje recomeço as Crônicas da Rua 2 de um modo diferente. Vou deixar a estória fictícia de lado e tentar reproduzir tudo o que vi e ouvi. Talvez, em uma história ou outra eu mude apenas os nomes e não me preocuparei em colocar datas exatas porque não lembro das ordens dos acontecimentos.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Introdução -A Rua 2

Árvore às margens do córrego paralelo a Rua Prof. Paulo Assis Ribeiro: minha certeza é que está ali a mais de 40 anos e sobrevive as mudanças, mas deve existir a muito mais tempo.




A palavra capão designa um bosque em meio a um descampado. O bairro de Capão Redondo ganhou este nome por causa de um bosque de Araucárias que unidas formavam um grande círculo perfeito com cerca de 50 quilômetros de circunferência. Mas de descampado não há nada. Admirando o bairro das áreas mais altas, passei a chamá-la de Grande Bacia, pois esta parece ser sua forma. Seus morros parecem formar as bordas de uma bacia funda. Bem lá embaixo, 'no fundo', o que antes eram um rio onde muitos iam pescar, tornou-se um fio de dejetos e esgoto que ainda insiste em correr.


A área deste bairro perde-se de vista. Dizia meu pai na roda de conversas com os vizinhos que tudo aquilo era um conjunto de fazendas e sítios. Eu olhava a conta de luz ainda com o nome do antigo nome - parecia nome de libanês ou judeu. Em 1971 haviam muitos alemães, japoneses, libaneses, portugueses... Sabia que essa imigração tinha algo a ver com as fazendas que existiam antes do bairro... Na segunda década do século XX ninguém vivia ali. Ainda hoje há quem conte que vinham em grupos de outros lugares para pescar no mesmo rio que hoje está morto.


A 'roça' teve seu cenário modificado com a chegada de migrantes também. A área onde hoje está o Parque Santos Dias foi o primeiro lugar ocupado tornando-se a conhecida Cohab Adventista. De lá pra cá muita gente veio morar aqui. Ficaram os vestígios do que antes era apenas vegetação. Pode-se ver ainda muitas árvores e terrenos ocupados apenas por mato onde moradores jogam lixo e entulho. Os morros foram ocupados por casas.


O bairro que já foi conhecido como o lugar mais perigoso do mundo guarda na memória de quem nasceu ou mudou-se para cá ainda criança histórias que ficaram no tempo refletindo um contraste social onde duas realidades paralelas convivem desde sua origem. Mesmo assim, quem nasce aqui nasce marcado não só pelo racismo, mas também pela discriminação social. Pra quem é de fora, todo mundo que nasce aqui é marginal, criminoso, viciado e favelado. Em cursos superiores de ensino o conselho para quem mora no Capão  e quer fazer um Curriculum é não citar o nome do bairro, pois há empresas que já olham este detalhe e descartam qualquer possibilidade de contratação. 

Nascer no Capão abre duas opções de vida: ou entrar no sistema e tornar-se um cidadão ' de bem' ou se marginalizar. Nem todo mundo que adere ao sistema está escolhendo rejeitar a própria realidade e nem todos que seguem a vida marginal o faz por puro prazer. Há as áreas residenciais vizinhas de favelas... Brancos, amarelos e negros... A cor da pele difere um do outro, mas todos estão sujeitos as mesmas coisas, embora vivendo situações diferentes... Todo mundo no Capão conhece os dramas e alegrias de viver aqui, não importa de que lado da rua esteja vivendo.


O bairro inteiro teve várias ruas chamadas 2. O Conto da Rua 2 conta histórias de uma garota que assistiu as mudanças e acontecimentos no bairro à partir de 1971,especificamente em uma dessas ruas e de onde podia - com visão privilegiada - testemunhar muitos acontecimentos em torno do que hoje é o principal centro comercial do bairro. As histórias não são fictícias, mas os personagens são. Tudo foi sutilmente adaptado. Histórias que ouvi, que contam, que lembram e ficarão perpetuadas aqui.