domingo, 3 de fevereiro de 2013

A Benzedeira e o Saci


Atual fachada da casa onde viveram 'Seu' Albino e Dona Hilda. Antes, sem muro e sem cerca. Apenas um barranco onde uma escada foi moldada e que levava a casa abaixo do nível da rua. Seus filhos e netos ainda vivem ali.


Na Rua Dois rondavam muitas histórias de fantasmas, espíritos e entidades pertencentes ao folclore brasileiro. Não era apenas superstição  Os moradores ali na grande maioria viveram na roça, bem no interiorzão mesmo, com luz de lampião, carroça como meio de transporte, longas caminhadas  e muitas delas atravessavam os imensos campos das lavouras. Ali, a devoção e a fé era parte da cultura e rotina das pessoas. Casas há quilômetros de distância uma das outras. A escuridão da noite só era dissipada com noite de Lua cheia e céu estrelado. E os sons da noite mantinham os sentidos alertas.

A superstição e a fé fazem as pessoas enxergarem aquilo que elas acreditam existir, mesmo que não exista... Mesmo que exista uma explicação racional. Ignorância? Creio que não! As pessoas daquela época e dessas localidades rurais eram ingênuas, quase que inocentes  Tinham malícia pra viver, pra negociar, pra criar os filhos, para viver em comunidade, mas não para agir com segundas intenções maldosas.

Até mesmo algumas superstições conhecidas tinham uma boa intenção: não deixar o chinelo virado ou a mãe morria. Colocar uma vassoura atrás da porta quando a visita fosse desagradável e desejava-se que ela fosse logo embora. Não comer manga e tomar leite. Não comer ovos e carne de porco em período menstrual. Ter um vaso de Arruda na porta ou usar um galho preso na orelha. Não sentar na cama onde um casal dormia. Não levantar um bebê numa altura acima da cabeça. Eram muitas... Todas com a intenção de manter os filhos 'na linha'. Também pudera: a maioria das famílias tinham de 4 à 10 filhos! Era preciso uma boa tática para mantê-los disciplinados.

Eu adorava ouvir estas histórias de assombrações e aparições. Na verdade, não sentia medo e nem me espantava. No fundo, nem acreditava nelas. Mas o modo como contavam me encantava. Gostava de observar as expressões das pessoas quando contavam histórias. Todo o rosto e corpo agiam em conjunto, e no olhar eu quase podia ver o narrador se transportando para aquela história. Eu pegava carona.

Meu pai vivia nas feiras do 'Rolo'. Nessas feiras as pessoas trocavam coisas que não queriam mais por coisas que queriam. Cada vez que meu pai ia ele conseguia algo de maior valor que da última aquisição. Foi assim até que conseguiu uma TV usada que mesmo naquela época já era ultrapassada. A TV era chamada de televisor. Muito diferente das TVs de tela plana que vemos hoje... Os aparelhos televisores tinham pernas iguais as mesas e cadeiras tem. O botão para mudar de canal era enorme e cada vez que se mudava o canal ouvia-se um estalo. Hoje, minha transmissão HD por assinatura de 120 canais me faz pensar do que reclamamos: aquela TV só tinha quatro canais! O que mais marcou na lembrança foi o som do chiado e as imagens em preto e branco. Só pessoas de alto poder aquisitivo tinham TV. Boa parte dos moradores da Rua Dois não tinham. Novela, só no rádio. Por isso, meu pai não pensava só em sua família ao desejar adquirir o aparelho. Pensava também nos vizinhos. Ele sempre teve a mania de dividir tudo. Tanto é que na Copa de 1986 foi na Casas Bahia - que anos antes vendia seus produtos em peruas Combi - fez uma prestação de várias parcelas, montou uma barraca na calçada, pegou a mesa da cozinha onde colocou a TV á cores, e montou uma churrasqueira para que a rua inteira pudesse assistir aos jogos. Tudo isso depois de mobilizar a mulherada e as crianças para recortar várias bandeirinhas verdes e amarelas para decorar a rua inteira. 

Com o televisor ligado todas as noites no Jornal Nacional com Cid Moreira, íamos  para a casa dos vizinhos, na segunda casa depois da nossa. Atravessávamos quintal por quintal, pois não haviam muros ou cercas. Neste período, meus pais 'trocavam' de filhos. Nós íamos para o vizinho ouvir histórias do simpático casal que ali morava. E os filhos deles iam para nossa casa assistir novela. Eu e minha irmã éramos ainda muito crianças e eramos proibidas de assistir. O casal simpático não gostava de televisão. Então, antes de entrarmos pela cozinha, sentíamos o cheiro de café recém passado em filtro de pano. As canecas de Ágata sempre estavam posicionadas no lugar onde nos sentaríamos á mesa. Após nos sentar, Dona Hilda servia o café e 'Seu' Albino é quem começava a contar as histórias.

'Seu' Albino era um imigrante português. Achava ele bonito. Gordo e alto, tinha bochechas rosadas e olhos claros. Sempre com um suspensório segurando as calças, era pra mim a perfeita imagem de Papai Noel de férias, pois, ele era calvo e não tinha longas barbas brancas, apenas bigode. O que mais gostava quando ele falava era de seu sotaque. E toda vez que nos via dizia: "- Cadê a baiana de cacule?".

Dona Hilda era a benzedeira da Rua Dois e redondezas. Mesmo sem saber o que era uma benzedeira, eu via algo de misterioso nela. Acreditava que ela era uma bruxa boa. Tinha um nariz grande e meio que cumprido. Usava os cabelos presos e um coque. A ponta dos dedos afinalados e unhas grandes. Parecia ter o dobro de idade que possuía. Não era bonita, mas eu achava! Tinha uma pele queimada de sol, típica de índios. Enquanto ouvia as histórias, observava os tantos caldeirões de ferro pendurados na cozinha e aquela casa toda de tijolinhos a vista dando uma aparência de casa com três séculos de idade. Dona Hilda não ficava quieta, andava de um lado para o outro se ocupando com suas tarefas mesmo a noite. Balançava sua longa saia escura e a ideia de que ela era uma bruxa ficava mais forte. No dia que á vi com os longos cabelos negros soltos que quase chegavam á dobra das pernas eu tive certeza: é bruxa!

Havia uma crença entre os moradores de um tal de 'bucho virado'. Era algo que vez ou outra toda criança tinha. Penso que hoje o tal de 'bucho virado' seja a tal da virose que os médicos nunca explicam direito o que é. Parece que aquela história de erguer a criança na altura acima da cabeça fazia muito mal. E erguer a criança em movimentos muito bruscos fazia com que o aparelho digestivo das crianças 'saísse do lugar'. Causava diarreia e muita febre. As mães ao ver os sintomas já reconheciam e corriam para Dona Hilda. Minha mãe era uma. Era frequente minhas idas para ser benzida. Eu já era grandinha a última vez que vi a dificuldade da benzedeira de fazer seu ritual. Dona Hilda dizia que era 'cobreiro' e mau olhado.

O ritual parecia simples. Ela pegava uma vasilha com água e rezava nela. Pegava vários ramos de Arruda e mergulhava naquela água. Depois de nos deitar na cama diante dela, ela erguia o ramo de Arruda e espirrava aquela água sobre nós cantando uma musiquinha que só lembro o começo: "- Credo, em Cruz e Cobreiro...". Cantava, fazendo o sinal da cruz no ar e espirrando a água. Depois, segurava os tornozelos, colocando os calcanhares lado a lado. Feito isso, nos erguia até ficarmos de ponta cabeça e nos virava. No mesmo dia os sintomas desapareciam. Seria feitiço?

Anos depois, meu filho mais velho ainda bebê apresentou os mesmos sintomas várias vezes. Com febre tão alta que causava delírios, levava ao Pediatra que não descobria o que era então, só passava antitérmicos. Não havia ainda esse diagnóstico de 'virose'. Um dia, minha mãe lamentou que Dona Hilda não estivesse mais entre nós pois aquilo era mau olhado. Me lembrei do ritual. Não tinha Arruda e nem me lembrava mais da musiquinha ou que tipo de oração ela fazia. Mas, deitei meu filho diante de mim e juntei os calcanhares. Percebi que uma das pernas estava alguns centímetros mais longa. Mantendo os calcanhares juntos, ergui meu filho e o virei. Na noite daquele dia a febre e a diarreia passaram. Outras vezes depois, percebi que uma perna sempre estava mais longa que a outra e concluí que, de tanto erguer e brincar com meu filho suspenso no ar, de alguma forma o quadril saia do lugar causando os sintomas. Depois que passei a ter mais cuidado, nunca mais houve os sintomas.

Em uma das noites após um longo período de histórias - passou naquela noite algum programa especial depois da novela - eu e minha irmã nos despedimos do 'Seu' Albino e de Dona Hilda e saímos para ir pra casa quando minha irmã parou no meio do caminho, assustada com um dos vários cachorros da casa que latia olhando para o mato. No fundo do quintal havia muito mato ainda. Olhei curiosa para saber o que estava irritando o cachorro. Vi então aquele par de olhos vermelhos feito sangue que desapareciam toda vez que piscavam. Na minha mente infantil só havia alguém escondido ali. Não me questionei sobre os olhos vermelhos. Dona Hilda saiu e perguntou o que estava acontecendo. Mostrei a direção onde estavam os olhos vermelhos. Ela riu e disse: "É o Saci" Não precisa ter medo, ele só está curioso!". "- Como a senhora sabe? - indaguei ao que ela respondeu: "- Ás vezes, converso com ele! Podem ir, eu fico aqui olhando!"

Minha irmã se agarrou em mim e fomos caminhando de volta pra casa, quintal por quintal até encontrarmos os filhos do casal que retornavam de nossa casa. Não contamos o episódio a eles, mas contamos aos nossos país. Minha mãe duvidou. Meu pai riu e disse: "- É, ás vezes, ele passeia por aqui! Também já vi ele!"

Superstição ou não? Nós enxergamos as coisas em que acreditamos!